14/01/2018

Treinador inspira crianças através do futebol em Engenheiro Coelho

Ricardo Afonso Lopes Vieira – o Mabola – teve chance de se tornar um jogador profissional na Europa

Michael Harteman

A história do morador de Engenheiro Coelho, Ricardo Afonso Lopes Vieira, mais conhecido como Mabola, poderia certamente ser o roteiro de um filme. Nascido no dia 26 de outubro de 1986, em Guiné Bissau, na África, ele tem uma história de superação em meio as diversas dificuldades, como pobreza e uma infância vivida em meio da guerra.

Com diversos motivos para desanimar, Mabola encontrou seu caminho no futebol e na religião. Desde então, tem ajudado a mudar a vida de diversas crianças por onde passa como professor de futebol. Criou e coordena o projeto denominado Escola de Futebol Imbewu Formação de Valores, que, atualmente, atende 75 crianças de Engenheiro Coelho.

Mabola é um dos sete filhos de José Lopes Vieira e Helena Lopes Vieira. Pobreza e guerra civil fazem parte de sua história. “Quanto mais filhos, melhor. Esse era o pensamento em Guiné-Bissau, já que as famílias precisavam de bastante pessoas para trabalhar na plantação”, explica Mabola.

Como filho do meio, ele foi educado com responsabilidade e, desde pequeno, entendendo as dificuldades na qual vivia. “O meu país foi devastado pela guerra, e a fome era algo visto por todos os lados”, relembra o professor. Além da fome, Mabola passou por diversas situações trágicas, como ver amigos mortos por emboscadas da guerra civil e a morte da mãe, quando tinha doze anos.

Morte da mãe

A progenitora do atleta filantrópico adoeceu quando ele tinha apenas doze anos. Mabola conta que, um certo dia, quando a mãe estava doente e sentia muita fome, ele se prontificou a buscar alimento. “Entrei no meio da selva, sem contar para ninguém, queria procurar frutas para minha mãe, era um lugar bastante perigoso”, afirma. Quando estava retornando, segurando com a camiseta algumas frutas, Mabola se deparou com um búfalo selvagem. “Esse animal estava bravo, ferido, e começou a correr atrás de mim quando comecei a correr, tropecei na raiz de uma árvore e o bicho veio para cima de mim”, conta o professor.

O que parecia um cenário certo de morte, tornou-se um milagre. “Apareceu um homem, não sei de onde, com uma vara e espantou o animal, em seguida, essa pessoa me levou para uma aldeia para eu cuidar dos meus ferimentos no pé”, explica Mabola. Quando voltou para casa, Helena Lopes Vieira, mãe do professor, já estava morta. “Ela faleceu sem saber onde eu estava”, exclama.

Com a morte da mãe as dificuldades se intensificaram e as responsabilidades aumentaram. “Muitas vezes ficávamos com fome. Um olhava para o outro, era muito triste. A escola era a 12 km de casa, não tinha transporte e, no colégio, não tinha merenda, passávamos muita fome. E, na volta, era no sol quente africano”, relembra.

Prisão do pai

Um ano após a morte da mãe, Mabola viu seu pai ser preso, após se envolver em um acidente de carro. “Ele tinha pouca visão e esteve em um acidente que matou um motociclista, foi condenado a cinco anos de prisão”, explica o treinador. A família ficou resumida à sete jovens, sozinhos, em uma casa que já não contava com a presença dos pais.

Quem assumiu as principais responsabilidades foi a irmã mais velha. “Quando caia a noite era um sentimento muito triste, nós víamos que os vizinhos tinham a presença dos pais e, em nossa casa, era um ambiente de muita tristeza”, lamenta.

Pai e irmãos de Mabola ainda moram na África

Contato com o futebol

Na adolescência, Mabola teve a oportunidade de começar a treinar em uma escolinha de futebol em Guiné-Bissau. Rapidamente, o jovem foi aprimorando o dom que parecia estar escondido, esperando uma oportunidade para se revelar. “Vi no futebol um caminho para ajudar minha família”, conta.

Assim, o jovem começou a se destacar. “Eu comecei a aprender a fazer muitos gols, era muito rápido, como o Ronaldo Fenômeno. Com 14 anos fui artilheiro em uma competição. Botava a bola na frente e ninguém me pegava mais”, afirma. Com o desenvolvimento rápido, não demorou para que ele começasse a jogar pela seleção de Guiné-Bissau. “Joguei na seleção sub 16 e sub 17 do meu país. Nas competições de base, tive contato com muitos jogadores que ficaram famosos, como Didier Drogba, Yaya Toure, Kanu”, comenta.

Também nesse período, Mabola começou a frequentar a Igreja Adventista do 7° Dia. Dessa forma, concomitantemente, o futebol ia fazendo parte de sua vida e as palavras de fé tomavam conta de seu viver.

Oportunidade de ir para o Futebol Europeu

O assédio dos clubes do futebol europeu é comum em países africanos, sobretudo quando o jogador tem destaque, como era o caso de Mabola. O atleta despertou interesse no Benfica, de Portugal. “Surgiu essa oportunidade para ganhar muito dinheiro, tudo o que eu queria era ir pra Europa”, admite.

Com o contrato praticamente assinado, Mabola recebeu uma orientação do pastor da Igreja. “Nós adventistas não trabalhamos aos sábados, e o pastor me disse que se eu fosse pra Europa eles iriam me fazer jogar e treinar no sábado”, relembra. Sem saber o que fazer, o jovem, então, pediu um sinal como resposta. “Eu pedi para que Deus mostrasse se era para eu ir ou não pra Europa. Se não fosse para eu ir, que ele me causasse algum problema no último treino que eu iria fazer na África”, explica.

Sem imaginar que algo realmente pudesse acontecer, Mabola compareceu ao treinamento, imaginando que aquele seria um dia como qualquer outro. “Eu estava aquecendo e o ligamento do meu joelho direito rompeu. Naquele momento eu caí, olhei para o céu e comecei a chorar, sabia que Deus não queria que eu fosse”, afirma.

Por isso, o jovem decidiu ficar no continente africano e realizar pregações em cidades do continente. “Após eu desistir, fiquei um ano trabalhando com o evangelho na África e cerca de 400 pessoas se converteram. Trabalhei em Guiné-Bissau e Senegal”, lembra.

Vinda ao Brasil

Sem jamais se arrepender da decisão que tomou, com cerca de 18 anos, Mabola teve a oportunidade de vir para Engenheiro Coelho. “Um pastor me falou sobre Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) e eu me interessei”. Pelo município coelhense, o jovem se formou em Administração e se casou. O casamento gerou o pequeno Ricardo Alexandre José Vieira. “Trabalhe por um tempo dentro do Unasp e também em uma empresa, com muito esforço consegui me formar”, conta Mabola.

Período no Chile

Mabola foi com a família para o Chile em 2015. O casamento, no entanto, não ia bem e o casal decidiu terminar o relacionamento. “Foi o melhor a fazer, ela conseguiu um emprego em um aeroporto do Chile e eu fiquei com a criança e, aos finais de semana, ficava com ela”, explica o esportista que passou por dificuldades em território chileno. “Eu fiquei desempregado e andava com meu filho para cima e para baixo atrás de emprego”.

Sem se deixar abater, Mabola distribuiu diversos currículos, até quem um dia, alguém entrou em contato. “Uma pessoa da cidade de Iquique, que encontrou meu currículo e viu que eu tinha experiência com o futebol, ligou para mim”. O convite era para que ele fosse preparador físico de uma equipe de futebol, formada por médicos. “Esses profissionais tinham um time que disputava competições. Eles queriam um trabalho de fortalecimento e eu me tornei professor deles”.

Com dedicação, carisma e talento, Mabola ganhou a confiança e o respeito dos médicos. “Um dia eles me sugeriram, Mabola, por que você não ensina futebol para os nossos filhos? Foi assim que surgiu a ideia de fazer um projeto voltado para as crianças”, justifica. Com o mesmo empenho de sempre, o ex-atleta elaborou um projeto completo para os pequenos. “Nosso objetivo era, também, a formação de valores, não só o futebol”.

O projeto foi se expandindo e ficando conhecido. Não demorou para que pais de crianças começassem a tirar os filhos de outras escolas e os levassem para as mãos de Mabola. “As famílias ligavam felizes, comentando sobre a mudança dos filhos em casa, que eles estavam mais respeitosos e ajudando nos serviços domésticos”, exclama o treinador. Mabola treinava as crianças como se fossem filhos. Usava o futebol e sua experiência de vida para ensinar e educar. “Meu filho treinava comigo também, eu ensinava tudo o que vivi para as crianças, assim como ensinava meu filho”.

A estadia de Mabola no Chile ia bem, até que um forte terremoto atingiu a região onde morava. “Estávamos em treinamento na praia quando o terremoto começou. Fomos alertados sobre o perigo de tsunami e os pais das crianças começaram a ligar desesperadamente para meu celular, foi uma situação tensa”.

Felizmente o tsunami não veio, entretanto, o filho de Mabola ficou traumatizado com o ocorrido. “Depois disso, ele ficou com muito medo, pedindo para voltarmos ao Brasil”, recorda. O professor, então, conversou com a mãe do garoto, contando sobre a decisão de voltar ao Brasil. “Passei o projeto para outras pessoas e a escola funciona até hoje com os mesmos conceitos que eu ensinei”.

Retorno ao Brasil

“Voltei com mais experiência de vida. O Brasil é minha terra também, eu tinha que fazer coisa boa aqui”, exclama o educador que retornou no início de 2017. Com sede de continuar com o projeto por aqui, Mabola foi conversar com o diretor geral do Unasp, José Paulo Martini. “Eu fui pedir ajuda para ele, precisava de um campo para treinar as crianças do universitário, e ele me arrumou”, conta.

Com espaço para treinar nas proximidades da faculdade, os primeiros alunos começaram a chegar. “Iniciei com 30 alunos, sempre me dedicando a mostrar o caminho para essas crianças”.

Mabola, atualmente, vive em Engenheiro Coelho, com o filho Ricardo

Os resultados no Brasil foram semelhantes aos obtidos no Chile. Pais felizes com o resultado dos filhos e mais crianças chegando. Atualmente, Mabola dá aulas de futebol para 75 crianças de Engenheiro Coelho. “Tento mostrar para eles a oportunidade que eles estão tendo, jogando contra outras escolas de futebol”. A escola leva um nome que não poderia ser melhor. Imbewu, que significa “semente da África para o Brasil”.

Mabola encara a escola de Engenheiro Coelho como encarou todos os desafios em sua vida, com muita dedicação e amor. Hoje, ele também conta com profissionais voluntários como médicos e psicólogos. “Nosso objetivo esse ano é fazer palestras com eles, trazer pessoas para conversar e ensinar sobre diversos assuntos”, afirma. Com tanta dedicação, o projeto de Mabola na cidade coelhense é conhecido por outros projetos pelo Brasil. Prova disso é que Imbewu recebeu um convite do Flamengo, do Rio de Janeiro, para irem até a capital carioca com as crianças e realizar amistosos e conhecer a cidade. “É uma oportunidade de ouro para essas crianças”.

Vale ressaltar que a preocupação do jovem com o futuro das crianças é grande e não se limita apenas aos jovens que ele atualmente atende. O anseio dele é atender outras crianças. “Tenho muita preocupação com Engenheiro Coelho, é uma cidade que está crescendo. Temos que cuidar de nossas crianças. Elas não podem ser cuidadas por traficantes. Mas quem vai patrocinar esse projeto?”, indaga Mabola.

Imbewu

Em poucas palavras, Imbewu é mais que uma escola de futebol, é um caminho a seguir! Formada por tudo aquilo que Mabola vivenciou durante a vida, ali as crianças são ensinadas a passar por dificuldades sempre com muita vontade, amor ao próximo e respeito. Por fim, Ricardo Afonso Lopes Vieira é sorriso fácil, carismático, solícito e, alegre, resume as experiências com as crianças que têm o futuro transformado pelo trabalho do professor.

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